20 março 2006

A FILOLOGIA DA PALAVRA CUIDADO ou esse megapost explica ipsis-líteris o post abaixo.

Em latim, donde se derivam as línguas latinas e o português, cuidado significa Cura. Cura é um dos sinônimos eruditos de cuidado, utilizado na tradução do famoso Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Em seu sentido mais antigo, cura se escrevia em latim coera e se usava em um contexto de relações humanas de amor e de amizade. Cura queria expressar a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pelo objeto ou pela pessoa amada. Outros derivam cuidado de cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar. O sentido de cogitare-cogitatus é o mesmo de cura: cogitar e pensar no outro, colocar a atenção nele, mostrar interesse por ele e revelar uma atitude de desvelo, até de preocupação pelo outro. O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida.
Cuidado significa, então, desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Trata-se, como se depreende, de uma atitude fundamental. Como dizíamos anteriormente, cuidado implica um modo-de-ser mediante o qual a pessoa sai de si e se centra no outro com desvelo e solicitude. Temos, nas línguas latinas, a
expressão “cura d’almas” para designar o sacerdote ou o pastor cuja incumbência reside em cuidar do bem espiritual das pessoas e acompanhá-las em sua trajetória
religiosa. Tal diligência não se faz sem fino trato, sem zelo e dedicação, sem esprit definesse, como convém às coisas espirituais.
A atitude de cuidado por uma pessoa pode provocar preocupação, inquietação e sentido de responsabilidade por ela. Assim, por exemplo, dizemos: “essa criança é todo o meu cuidado (preocupação)”; ou como escreveu o Padre Antônio Vieira, clássico de nossa língua: “estes são, amigo, todos os meus cuidados (minhas inquietações)”. Um antigo adágio rezava: “quem tem cuidados não dorme”; ou “entreguei meu filho aos cuidados do diretor da escola” (coloquei-o sob sua responsabilidade). Os latinos conheciam a expressão dolor amoris (dor de amor) para expressar a cura e o cuidado para com a pessoa amada.
Cuidado, pois, por sua própria natureza, inclui duas significações básicas, intimimamente ligadas entre si.
A primeira designa a atitude de desvelo, de solicitude e atenção para com o outro.
A segunda nasce desta primeira: a preocupação e a inquietação pelo outro, porque nos sentimos envolvidos e afetivamente ligados ao outro.
Com razão, o grande poeta latino Horácio (65-8 a.C.) podia finamente observar: “O cuidado é o permanente companheiro do ser humano”.
Quer dizer: o cuidado sempre nos acompanha, porque nunca deixaremos de amar alguém e nos desvelar por ele (primeiro sentido); nunca também deixaremos de nos preocupar e nos inquietar por essa pessoa amada [segundo sentido]. Se assim não fora, não nos sentiríamos envolvidos com ela. Mostraríamos negligência e incúria por sua vida e destino. No limite, revelaríamos indiferença, que nada mais é que a morte do amor.
Leonardo Boff

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